And another article about the Stones in the same magazine...about the year of 1969 and the Stones
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1969: O Ano Em Que O Rock Morreu
Nunca é demais recordar aquele que é considerado o capítulo áureo da história dos Rolling Stones. Entre 1967 e 1969, surge o período que correspondeu à idade do armário da "youth culture" que começara a desabrochar nos anos 50.
Contestação, revolução e um cocktail explosivo composto por optimismo ingénuo e individualismo titânico foram alguns dos efeitos secundários que se fizeram notar nestes anos radiosamente adolescentes. É natural, então, perceber a razão por que o espírito que se ouve e se sente na música deste período não foi fácil nem espontaneamente reproduzido nos tempos que se seguiram. No Reino Unido e nos Estados Unidos da América, a vibração criativa era de tal forma intensa, que todos os géneros musicais passaram por momentos áureos (desde a soul à pop, passando pelo blues até ao jazz). Mas foi o rock, na sua expressão mais nuclear, o veículo escolhido para melhor ilustrar o «esprit du temp». Apesar de existirem variantes dentro do género (desde o roots rock ao psicadelismo), o rock sempre se manteve coeso e fiel, não só aos ensinamentos do blues e ao respeito pelas raízes, como também a um forte compromisso artístico-estético e social. Assim sendo, havia uma relação muito mais directa entre o índice de sucesso dos artistas e de grupos – como os Rolling Stones – e a produção de uma música democrática (acessível a todos e por todos apreciada) e de qualidade indiscutível. Já o conceito de mainstream que hoje se utiliza, no sentido mais pejorativo, só começa a impor-se na década de 70, altura em que o rock e a indústria começam a unir forças, desfragmentando este género musical no maior número possível de subgéneros de forma a justificar a criação do maior número possível de nichos de mercado e consumidores-alvo. «Rock sells out».
Os Rolling Stones foram, possivelmente, o grupo mais equilibrado em termos de popularidade, impacto cultural e inovação artística neste período. Por esta razão, foram também o grupo que melhor retratou todo o caminho através do qual, em ritmo de valsa lenta, o rock, como expressão artística una, válida e vertiginosamente criativa se foi transformando num produto comercializável. Todo este processo foi imortalizado não só através da música (em álbuns como Their Satanic Majesties Request, Beggars’ Banquet e Let It Bleed), mas também através de imagens em movimento (como é o caso de Gimme Shelter, Stones in the Park e Invocation of my Demon Brother).
Quando eles eram feiticeiros de Oz
Em 1967, os Rolling Stones lançaram aquele que viria a ser o seu álbum mais ambicioso e, talvez por isso, o que mais dividiu as opiniões da crítica e dos fãs. Rompendo de vez com a tradição r&b que, de uma maneira ou de outra, sempre os acompanhara ao longo da carreira, é em Their Satanic Majesties Request que a sonoridade dos Stones mergulha em pleno na experiência e no imaginário psicadélico. Brian Jones
Foi o membro dos Stones que mais curiosidade nutriu pelas sonoridades do mundo, pelas viagens através de tempos e de culturas diferentes e pelo recurso ao estúdio como chave-mestra que abria portas para a recuperação de vivências na produção de música nova e inovadora. Jones simbolizava também o ideal da 'flower-child' boémia, viajada, ecléctica, aberta a todo o tipo de experimentação terrena ou transcendental.
Their Satanic Majesties Request é a primeira gravação em que a hegemonia Mick Jagger/Keith Richard se dissolve, dando lugar não só à única composição e respectiva interpretação vocal de Bill Wyman (em «In Another Land», um «time-warp» no qual um cravo se encontra com um vocoder), mas também – e sobretudo – às viagens e experimentações em estúdio por parte de Brian Jones. Os melhores momentos do álbum vivem da contaminação da fórmula rock’n’roll por elementos estranhos e longínquos, como acontece no blues de «2000 Light Years From Home», afogado em sintetizadores e mellotrons de forma a construir uma atmosfera «estrangeira», desconhecida e incómoda.
Talvez por isso se compreenda a razão por que Their Satanic Majesties Request é injustamente visto por alguns críticos como um concentrado medíocre de todos os clichés dos «loucos» anos 60 (centrados na personalidade e no génio artístico de Jones), para não falar naqueles que – erradamente – vêem este álbum como uma retaliação estrategicamente «forçada» dos Stones aos lançamentos de Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band, dos Beatles, e de Pet Sounds, dos Beach Boys.
O que provocou, então, o retorno abrupto dos Rolling Stones à América? No espaço de um ano, os Stones trocaram sintetizadores e surrealismo por guitarras acústicas e hinos de intervenção, substituíram as viagens pela mente por doses cruas de realidade e rejeitaram imagens floreadas de Oz em prol de um WC.
Apesar de, ao longo da sua carreira, terem sempre deixado transparecer a influência do rhythm’n’blues, nunca o mergulho na América e nas raízes musicais que dela nasceram fora tão assumido como neste álbum.
O génio de Beggars’ Banquet reside na sua profundidade temática. Longe dos devaneios psicadélicos (e algo fúteis e desorientados) de Their Satanic Majesties Request, os Stones regressam à terra e cantam a natureza dual da vida e da humanidade: Deus e o Diabo, amor e ódio, sofrimento e êxtase. O hino gospel «Salt of the Earth» encerra um álbum que abre com seis minutos de celebração satânica («Sympathy for the Devil»); o lamento country de coração partido em «No Expectations» convive com o blues erótico de «Parachute Woman»; há ainda espaço para revolução e contestação política (ou não estivéssemos em 1968) em «Street Fighting Man», assim como para a homenagem sentida às raízes do rock’n’roll, com a versão do tradicional «Prodigal Son». Beggars’ Banquet é um álbum que nos remete novamente para o paralelismo entre o período romântico e o final da década de 60: o homem e a sua a re-ligação com a Natureza e o Transcendente, bem como os conflitos internos e morais que advêm desta «soul searching», foram temas extensivamente abordados (e cantados) em ambas as épocas. Blake, Shelley e Byron são substituídos por Jagger, Sly e Dylan, mas foi o líder dos Rolling Stones quem, indiscutivelmente, melhor representou o espírito renovado do anti-herói romântico (um rebelde mitificado, na tradição do anjo caído Lúcifer ou de Prometeu, o homem que ousou roubar o fogo dos deuses) e quem melhor ilustrou a frase «every man is a star», de Aleister Crowley.
Ao agrupar os álbuns Their Satanic Majesties Request, Beggars’ Banquet e Let It Bleed numa trilogia de Futuro/Passado/ Presente (respectivamente), compreende--se melhor a importância do papel dos Rolling Stones na definição do zeitgeist do final da década de 60. Their Satanic Majesties Request representava a quimera psicadélica e cegamente optimista, de um futuro irrealista, colorido a substâncias psicotrópicas (o sonho de um verdadeiro «Summer of Love»); Beggars’ Banquet simbolizava o reencontro com o orgânico, com as raízes e com a natureza bipartida de um ser humano ora sujeito a tentação, ora sedento de redenção; e Let It Bleed foi, possivelmente, o álbum que melhor conseguiu captar o turbilhão espiritual, artístico e cultural que assombrou o encerrar de uma era. Entre outros factores, também o desaparecimento gradual de Brian Jones pode ser interpretado como o primeiro agoiro dos caminhos perigosos pelos quais o rock ia enveredando.
Diabólico, satânico, divinal!
"As Confucian scholar Wang Fu-Chih puts it, “only a man of highest integrity can understand this law; basing itself on its revelation he can grasp the symbols, and observing its small expressions, he can understand the auguries”. In other words, the devil is in the details" . Brottman
4 de Março de 1967
Anton Szandor LaVey, Sacerdote do Satanismo, à porta da primeira Igreja Satânica. Usa capa de seda e camisa com um pentagrama.
É difícil apontar o momento em que os «groovy sixties» se começaram a transfigurar num período estranho e desconcertante. A procura incessante de novas alternativas espirituais ia esgotando-se: após ter provocado um forte impacto no início da década, conquistando intelectuais e estrelas, o misticismo indiano fora completamente adulterado através do aparecimento de falsos gurus e maharishis charlatães. A um ritmo quase diário, novas seitas e pseudo-religiões surgiam com novas respostas e novos deuses (e novas drogas de eleição). Um possível ponto de viragem encontra-se aquando a fundação da Church of Satan, nos Estados Unidos, por Anton Szandor LaVey a 10 de Abril de 1966. O interesse por uma espiritualidade de contornos obscuros já se manifestara sob outras formas, com os Kali Yuga e, em especial, através de um revivalismo dos estudos da magick do britânico Aleister Crawley. Muitas figuras dos panoramas artísticos britânico e americano revelavam um interesse crescente pelos estudos daquele que, na sua época, fora considerado «the wickedest man in the world».
Em Londres, Donald Cammell (actor e realizador do filme Performance, no qual contracenou Mick Jagger), Jimmy Page (guitarrista dos Led Zeppelin) e Anita Pallenberg formavam o núcleo duro de seguidores dos ensinamentos de Crawley. Pallenberg, uma actriz/modelo/boémia italiana de origem aristocrata, envolvera-se com Brian Jones em 1967, mas cedo o deixou para se juntar a Keith Richard. Foi deste modo que os Rolling Stones (e Marianne Faithful, companheira de Mick Jagger na altura) encontraram o seu lugar no nicho esotérico londrino. Se já em Their Satanic Majesties Request se detectava um ligeiro flirt com o esoterismo, é nas letras de Beggars’ Banquet e, em particular, durante as filmagens do espectáculo Rock and Roll Circus (Dezembro de 1968) que já se encontra um Mick Jagger aberta e assumidamente influenciado por correntes satânicas, ostentando tatuagens de máscaras diabólicas durante uma interpretação desalmada de «Sympathy for the Devil».
Em São Francisco, uma das figuras mais carismáticas do underground artístico era Kenneth Anger, um realizador de cinema que há muito nutria um fascínio obsessivo pela obra de Crowley. A obra e o universo do «magus» constituíam o tema central de grande parte das suas peças cinematográficas. Os visionamentos dos filmes de Anger em São Francisco, entre 1965 e 1966, eram habitualmente entrelaçados com experiências psicadélicas: nos programas que acompanhavam as sessões, podia ler-se «...Note: psychadelic researchers preparing for Pleasure Dome [Innauguration of the Pleasure Dome, uma das peças mais brilhantes de Anger] should remain seated during this intermission. The following film should be experienced in that Holy Trance called High…». A primeira ponte entre Kenneth Anger e a cena musical de São Francisco dá-se através de Bobby Beausoleil, um jovem de 19 anos que, em 1966, era guitarrista dos Love. Anger e Beausoleil residiam numa mansão vitoriana em Haight-Ashbury chamada The Russian Embassy e mantiveram juntos um tumultuoso relacionamento amoroso e uma prolífera parceria criativa. Anger escolheu Beausoleil para o papel de Lucifer, no ambicioso projecto Lucifer Rising; mas, em 1967, Beausoleil (que, mais tarde, se viria a envolver na Family de Charles Manson e hoje cumpre prisão perpétua) roubou grande parte do material filmado. Foi este o acontecimento que provocou a deslocação imediata de Kenneth Anger para a Europa.
Hyde Park, 1969
Marianne Faithfull (com o filho Nicholas) e Anita Pallenberg enquanto assistiam ao concerto de entrada livre dos Stones no Hyde Park, em Londres. Dois dias depois da morte de Brian Jones, estima-se que a nova formação dos Rolling Stones, com Mick Taylor em substituição de Jones, tenha conseguido juntar cerca de 200 mil espectadores.
Apesar de ter jurado terminar o seu trabalho como realizador (tendo inclusive publicado um «obituário» no jornal Village Voice), Anger conseguiu atingir na galeria de Robert Fraser, em Londres, «... uma enorme influência, numa convergência decadente de música rock, arte e psicadélia...». Através de Fraser, travou conhecimento com os Rolling Stones e com Jimmy Page e foi assim que «…nasceu uma estética de rock decadente, através da combinação de raiva e descontentamento, tradições dionisíacas e shamânicas, Decadência e Dada, que poderá encontrar o seu paralelo num contexto literário que inclui de Sade, Lautréamont, Rimbaud, Burroughs e Bukowski...». A pedido de Anita Pallenberg, Anger tornou-se numa espécie de «magus» tutelar dos Stones, iniciando-os na magia ritualista. Mick Jagger acabou por produzir a desconcertante banda-sonora (utilizando apenas um Moog) do novo projecto de Kenneth Anger – Invocation of My Demon Brother (1969), composto pelos fragmentos que sobreviveram do projecto inicial, e desaparecido, de Lucifer Rising.
Em apenas 11 minutos, esta peça consegue concentrar toda a tensão (artística, espiritual, sexual e política) que se vivia no final da década de 60. Comprova-se que a inocência e a integridade do rock se encontravam já fragilizadas, esperando apenas pelo golpe final. Perante imagens dos Magick Powerhouse of Oz (o grupo de Bobby Beausoleil em 1967), é fácil ver que algo estava muito errado. Não se trata apenas da iconografia demoníaca presente na música e nas imagens, até porque o rock se cruza com os caminhos do Diabo desde os tempos de Robert Johnson. É verdadeiramente desconcertante a combinação violenta de imagens de Beausoleil, com imagens da guerra no Vietname, com motos e Hell’s Angels, estranhos rituais (com a presença de LaVey e Anger) e imagens de um concerto com a maior banda de rock do mundo. A inclusão dos Rolling Stones neste retrato apocalíptico do final da década de 60 é incontornavelmente pertinente – Anger cultivava um gosto mórbido pelo declínio das grandes estrelas (já publicara, inclusive, o livro Hollywood Babylon, trabalho que retrata a decadência do «star system» na época dourada de Hollywood, entre os anos 20 e 50); e as imagens dos Stones utilizadas em Invocation captam o grupo no chamado «princípio do fim», isto é, no primeiro concerto após a morte de Brian Jones, realizado no Hyde Park em Julho de 1969.
Summer of Love vs. Winter of Hate
"Altamont was supposed to be like Woodstock, only groovier, and their movie would be groovier still. Instead, the Stones got what no one had bargained for: a terrifying snapshot of the sudden collapse of The 60s" . Godfrey Cheshire, in New York Press
Altamont, 1969
Sem se dar por isso, o 'Summer of Love', com o qual associamos cegamente os anos 60, transformou- -se gradualmente num 'Winter of Hate', cujo clímax se verificou num concerto dos Rolling Stones nos arredores de São Francisco, em Altamont, a 6 de Dezembro de 1969.
Sob um ponto de vista astrológico, o ano de 1969 pode representar o signo de Escorpião: o signo da decadência, da luxúria, do mistério, da obscuridão, da tecnologia e da morte espiritual como fim de um ciclo.
1969 foi um ano agridoce para os Stones. Após abandonar o grupo, Brian Jones morreu, em circunstâncias que ainda hoje permanecem por esclarecer. No entanto, os Rolling Stones encontravam-se no pico da criatividade e da popularidade. Lançaram a sua obra-prima, Let It Bleed, um dos álbuns mais representativos do espírito de raiva, desencanto e desespero que se vivia no final da década de 60. A carga simbólica de Let It Bleed é intensa e revela o lugar cimeiro dos Rolling Stones como músicos e ícones culturais. A evolução de «I Can’t Get No Satisfaction» (1965) até «You Can’t Always Get What You Want» (faixa que encerra o álbum) constitui não tanto um processo de maturação, mas mais uma prova do derradeiro desencanto que se fazia sentir: a aceitação da realidade, a rejeição da esperança, a desumanização e o culto do egoísmo (por alguma razão esta faixa foi usada no filme mais representativo da era yuppie, Os Amigos de Alex). Já a estrutura do álbum em si é simbólica: podem dividir-se as nove faixas de Let It Bleed em três conjuntos de três músicas cada, o primeiro representando o respeito pelas raízes e pela tradição americana («Love in Vain»/«Country Honk»/«You Got the Silver»), o segundo – e mais importante – o presente que se vivia como uma bomba-relógio prestes a explodir («Gimme Shelter»/«Midnight Rambler»/«You Can’t Always Get What You Want») e o último constituindo a profecia do rock do futuro, mais duro, dançável, sexual e altamente comercializável («Live With Me»/«Let It Bleed»/«Monkey Man»). À excepção do terrífico «Midnight Rambler» (que conta com um já espectral Brian Jones na percussão), o álbum foi inteiramente gravado com Mick Taylor.
Ironicamente, a primeira vez que Taylor se apresentou ao vivo como novo guitarrista dos Rolling Stones foi no concerto em Hyde Park, a 5 de Julho de 1969, apenas dois dias após a morte de Brian Jones. Este facto remete para uma ideia de sacrifício e de martirização do ícone máximo dos 'flower-children' em nome do novo rock que aí estava para vir. Neste concerto, um dos vários concertos de entrada livre de grande escala a ocorrer em 1969, já se respirava a atmosfera de cinismo e desencanto que viria a sucumbir, meses mais tarde, de uma forma abrupta e violenta em Altamont.
Há quem defenda que os acontecimentos de Altamont só não se verificaram em Hyde Park devido ao cavalheirismo e civismo do público britânico. Mas o rock mereceu honras de tragédia grega e foi exactamente isso que se verificou em Altamont. O Destino (anankê) quis que o rock morresse no local onde nasceu: na América. A ideia da organização relâmpago (mal planeada, sem qualquer previsão controlada das consequências) de um concerto grátis, a «hybris», o erro que conduz os (anti)heróis à violação da ordem estabelecida. A presença impune e irresponsável de Hell’s Angels como força de segurança no concerto e o brutal e cruel assassinato do jovem Meredith Hunter, a catástrofe. O documentário Gimme Shelter, que relata na íntegra a fatídica noite de 6 de Dezembro de 1969, o reconhecimento (anagnórise), no qual vemos os Rolling Stones em pleno processo de assimilação e constatação dos acontecimentos trágicos e fatais.
A organização do concerto de Altamont surge na sequência de críticas, por parte da imprensa americana, de que os Rolling Stones cobravam preços demasiado elevados pelos bilhetes dos seus espectáculos. Numa manobra de marketing (porque os tentáculos da indústria já controlavam a situação), que pretendia também ser uma espécie de compensação destinada aos jovens da costa Oeste dos EUA que não tinham vivido o seu Woodstock, a última data dos Stones em solo americano transfigurou-se num festival grátis que contava também com a presença dos Flying Burrito Brothers, Grateful Dead, Jefferson Airplane, entre outras bandas da Califórnia. Os irmãos Maysles documentavam a digressão dos Rolling Stones nos Estados Unidos; os eventos de Altamont alteraram por completo o teor desse trabalho.
Tudo em Altamont foi simbólico. O facto de os Stones só tocarem depois do anoitecer. Mick Jagger como mestre de cerimónia, ora perguntando (ao jeito de Country Joe MacDonald em Woodstock) «Why are we fighting and what for?», ora desempenhando na perfeição o seu papel de entertainer, ignorando as expressões de terror nas faces dos jovens que eram enxovalhados pelos Hell’s Angels, de forma a que a música pudesse continuar. O cetim vermelho ostentado por Jagger em palco contra o fato verde de Meredith Hunter, para sempre congelado na imagem que isola o segundo antes de ter sido fatalmente esfaqueado. Mas a música já não conseguia respirar em Altamont – e os jovens (simultaneamente guerreiros e mártires do veículo de expressão artística que lhes era consagrado) não conseguiam resistir mais. Quando o documentário dos irmãos Aysles (adequadamente intitulado Gimme Shelter) se aproxima do fim, fica a imagem da migração de milhares de jovens no regresso a casa, no cortejo fúnebre do rock, da década de 60 e dos valores que a caracterizaram.
A morte fica-lhes tão bem
Altamont foi o prego no caixão da década de 60 e da «Love Generation». A corrupção e o desflorar da integridade e dos valores de uma geração contaminou, inevitavelmente, a sua forma de expressão predilecta: o rock. Os Rolling Stones, como o grupo rock mais equilibrado em termos de popularidade e inovação artística, contribuíram para todo este processo de mudança e transformação. O que começara como um conjunto de amigos que se juntara para celebrar o rhythm’n’blues e as sonoridades americanas foi-se transformando, ao longo de uma década, numa instituição cultural de proporções gargantuanas. Após a fragmentação que se começou a verificar na década de 70, o rock nunca mais teve o mesmo peso nem a mesma capacidade de mudança de hábitos, convenções, paixões e ideologias que possuíra nos anos 60. Também a música dos Stones sofreu com esta fragmentação, embora mostrando esporadicamente sinais de vida (Exile on Main Street, Black and Blue, Emotional Rescue) que, até à data, têm vindo a reafirmar a importância do grupo na História da Música.
É também importante compreender que os Rolling Stones não estiveram isolados neste processo de morte lenta do rock. O próprio festival de Woodstock constituíra, meses antes de Altamont, o canto do cisne da «Love Generation». Já se sentia no ar o desânimo e o desencanto do público jovem (carne para canhão para a guerra do Vietname), bem como a saturação criativa dos músicos de folk, blues-rock e rock psicadélico de São Francisco que participaram neste evento, que continua a ser erradamente mitificado por quem insiste num (pre)conceito cor-de-rosa da década de 60.
Os Rolling Stones, mais e melhor do que qualquer grupo ou artista da época, representaram o espírito contestatário, controverso e diabolicamente brilhante que se viveu nos últimos anos do rock. Let It Bleed será sempre uma das poucas obras--primas que soube capturar integralmente o espírito desconcertante e mágico de um tempo que já aceitara o seu fim. Talvez tenha sido o sentimento iminente de finitude e término de uma época (e de uma forma de estar) que concedeu à música dos Stones a sua qualidade perene e incontestável.
Rita Vozone, ontem às 18:15